terça-feira, 23 de março de 2010

RECONSTITUIÇÃO DA MEMORIA FOTOGRÁFICA



A recuperação digital de imagens permite salvar das traças até a mais danificada das fotografias. O processo, entretanto, exige conhecimento técnico, habilidade e muita paciência Alcides Mafra Elas permanecem esquecidas a maior parte do tempo. Ficam escondidas no fundo de alguma gaveta atulhada, em caixas de sapato ou encerradas em álbuns despercebidos entre as tralhas da estante. Porém, basta um encontro fortuito durante alguma faxina ocasional para que aquelas fotografias guardadas há longo tempo despertem velhas emoções. Carinhosamente resgatadas do esquecimento, recompõem, em instantes de contemplação, um quadro vivo do passado. São surpreendidas, em seu refúgio, amareladas, rotas, maltratadas por anos de uso descuidado ou por acidentes de percurso. Já não se pode identificar com precisão as cenas retratadas, os rostos ameaçam desaparecer para sempre num emaranhado de rasgões, riscos e sujeira. Como carregam registros únicos, sua deterioração implica a perda de preciosos fragmentos da memória. Por sorte, há solução para estes casos. A prática da restauração – e também da manipulação – de imagens é contemporânea ao surgimento da fotografia. Antes que se popularizassem o computador e os softwares de tratamento de imagem, nas últimas cinco décadas, a recuperação de fotografias danificadas derivava de um delicado processo artesanal em que o restaurador – geralmente um fotógrafo com prática de laboratório – fazia cuidadosos reparos no negativo ou na cópia em papel, um trabalho lento e minucioso que exigia muita perícia. O desenvolvimento dos softwares de edição de imagem, especialmente o Photoshop, permitiu ao grande público, acesso a formas práticas de manuseio da imagem. Com algum conhecimento do programa, um computador, um scanner e uma impressora de boa resolução, o usuário pode se aventurar a editar suas fotografias, recortando-as, inserindo ou retirando elementos, inventando texturas ou recuperando falhas de captação ou produzidas pela ação do tempo. Alguns se especializaram, agregando as funcionalidades da tecnologia ao conhecimento anterior ou simplesmente se inserindo num terreno completamente novo. Quem exerce o ofício de manipulador digital de imagens destaca a rapidez e a capacidade praticamente ilimitada que o computador tem de resolver os mais complexos problemas. Todavia, não perde de vista os paralelos com a técnica tradicional. “O processo de restauração é um trabalho que requer muito talento e muita dedicação, porque na maioria das vezes você pega imagens que não contêm informações corretas e tem que reconstruir a imagem”, opina Alexandre Keese, de 29 anos, consultor gráfico e conhecedor dos recursos do Photoshop. Para o técnico, o processo ganha ares de arte ao exigir do profissional um fino trabalho de reconstituição que pode ser executado em tempo relativamente curto ou levar dias, dependendo do estado da imagem. Em qualquer um dos casos, ensina Keese, é necessário dominar algumas ferramentas e exercitar a paciência. Desenvolver macetes também conta. Por exemplo, uma forma que ele encontrou para suprimir deficiências foi criar “bancos” de olhos, de bocas e de narizes, os quais vai aplicando até encontrar um que se adapte melhor ao problema. Getulino Pacheco, de 39 anos, ilustrador e parceiro de Keese na restauração de imagens, entende que não há segredos neste trabalho, mas concorda que é necessário algum talento para desempenhar bem a função. “Qualquer pessoa, conhecendo as ferramentas, pode fazer uma recuperação. Dependendo da foto, é demorado. Tem foto que é rasgada, tem muita sujeira, tem que arrumar o foco, mas um pouco de conhecimento técnico do aplicativo e talento normal é o que bastam para deixar a foto ok”, afirma. Há que se considerar, entretanto, o tamanho do estrago. Alguns clientes procuram o restaurador com fotografias em frangalhos. Caberá ao profissional aplicar a dose de técnica, talento e paciência necessária para superar obstáculos que são, invariavelmente diversos e, aparentemente, intransponíveis. “Uma coisa que eu aprendi com o Photoshop é que não existe o impossível. Existe o ‘ainda não testei’ ou ‘ainda não fiz esse processo’, porque muitas coisas que eu falava ‘não dá’ hoje eu faço. O grau de complexidade varia, mas eu acho que deve dar para fazer tudo, só que com uma dedicação muito maior”, avalia Keese. Nesses casos, quando o cliente entrega ao restaurador uma imagem aos pedaços, registro único e carregado de valor sentimental, o faz acreditando que apenas um milagre pode salvar sua fotografia. Ao ver o resultado desse laborioso trabalho, a sua foto recuperada, é como se estivesse realmente vivenciando um milagre. Pacheco relata um caso ilustrativo: certa ocasião, uma senhora lhe confiou a foto do seu casamento, desfigurada, faltando boa parte do bolo, dos doces e demais detalhes da cena. Diante do quadro desesperador, ele pôs mãos à obra: “Eu copiei a bandeja de salgadinho, inverti, fiz a trama da toalha, coloquei onde tinha a toalha. Nossa! Ela até mandou um negócio de doces para mim”, diverte-se. Mais do que compensação em dinheiro, os especialistas na recuperação de fotografias encontram nesta perplexidade o maior motivo de satisfação. O fato de lidarem com as lembranças e emoções das pessoas agrega ao seu trabalho importância e reconhecimento. “Para você é normal, as coisas que você está fazendo e tudo mais, mas para a pessoa que não conhece, é impossível. Então, quando ela vê uma coisa que você restaurou, ela fica maravilhada, como se fosse um milagre. É como se você voltasse no tempo e tirasse a fotografia de novo. Isso que é legal”, descreve Pacheco. “Quando você está fazendo uma foto dessas, você fica muito contente com o resultado, porque você conseguiu resgatar algo muito precioso, que é um sentimento, é uma sensação, é um momento”, destaca Keese. Ele, aliás, também conta um caso que ressalta essa importância. Na intenção de limpar uma fotografia empoeirada, a empregada de uma cliente retirou a imagem da moldura e usou um produto de limpeza. “Automaticamente ela tirou toda a informação da foto. Ficou uma coisa! Pegamos essa imagem, restauramos, reconstruímos todo o terno, gravata, olhos, cabelos, colocamos toda a intensidade. Na hora que a moça viu a foto, que era do marido dela já falecido... foi indescritível a alegria dela! Era a foto de quando eles casaram”. Os conservadores de memória Nem só de pixels, bites e Photoshop vive o mundo da restauração fotográfica André Teixeira Ainda há profissionais nesse ramo – principalmente no de fotos e negativos antigos – trabalhando de maneira artesanal, utilizando pincéis, fórmulas químicas e, principalmente, amor à fotografia e à sua história. “Nosso trabalho é mais ligado à memória. Fotos antigas são documentos que devem ser recuperados e preservados”, diz Márcia Mello, que já trabalhou no Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da Fundação Nacional de Arte (Funarte) e no Museu de Arte Moderna (MAM) e desde 97 tem um ateliê com a sócia Nazareth Coury. Para Márcia – que se considera mais uma “conservadora” de fotos do que propriamente uma restauradora –, há uma diferença básica entre seu trabalho e o realizado digitalmente. “Nós trabalhamos na recuperação e preservação do original, enquanto o processo digital cria um novo produto. Nós preservamos a memória, o computador preserva ou recupera a informação”, explica. O digital, para ela, deve ser visto como um instrumento que complementa o trabalho de recuperação. “É uma ferramenta que facilita a transmissão das informações, protegendo o original, que deve ser sempre a prioridade”, analisa. Ela vê com preocupação a postura de algumas instituições que investem apenas na digitalização de seu acervo de imagens e documentos, esquecendo da necessidade de preservar os originais. “Fotos e negativos antigos contam histórias”. No ateliê, Márcia e Nazareth trabalham principalmente com acervos de empresas e famílias. A maior parte é composta de fotos. “As pessoas geralmente perdem os negativos, ou eles ficam, no caso dos mais antigos, com o profissional que fez as fotos. Os que aparecem geralmente são de algum artista que tem o acervo fotografado há muito tempo, quer publicar as imagens num livro ou catálogo e os traz para uma limpeza”, explica Márcia. Recebem também muitos negativos em vidro e até daguerreótipos. O trabalho com os negativos flexíveis é basicamente de higienização, principalmente a retirada de fungos. “A gelatina do filme é um nutriente para os fungos que, em condições de altas temperaturas e umidade elevada, reproduzem-se rapidamente”, diz. Terminado o trabalho de limpeza, mostram ao cliente a melhor maneira de acondicionar o material. “Se eles forem guardados de forma inadequada, os problemas voltam”, adverte. Com fotos, o trabalho pode ir um pouco mais longe. No papel, é possível fazer retoques e intervenções maiores em busca da imagem original, mas sem exageros. “Como disse, sou mais uma conservadora. Interrompo o processo de deteriorização e mostro como evitar que ele se repita. A partir daí, se quiser ir mais longe na reconstituição da imagem, o cliente pode digitalizar o original e trabalhar numa nova ampliação para colocá-la num porta-retrato, por exemplo, mas sempre mantendo o original a salvo”, lembra. Márcia diz que toda intervenção efetuada por elas numa foto é reversível, ou seja, a foto sempre pode voltar ao aspecto anterior ao trabalho de restauração. A tinta é solúvel em água, a cola também, e por aí vai. “Tudo que fazemos pode ser desfeito. O importante é preservar o original e toda a história que ele conta”,

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